"Índio que é índio
Anda pelado
Ou veste tanga
Mora na floresta
Em casa de palha
Tem cara pintada
Não sai do mato
Come mandioca
Usa cocar e apito
Caça de arco e flecha
E se chama Iracema
Ou Guaraci".
Olha, amor!
A chuva que cai lá fora
Deixando esse cheiro no ar
Qual teu odor expressivo
Entranhado na pele da menina
Que flutua longe do chão...
Vê, amor, que furtivo!
As nuvens demoram a passar
Cheias das lágrimas que me roubaram
Cheias dos rastros de amor que deixaste
Nos cantos da cidade sem esquina
E, é claro, em meu coração...
Pois, que coisa, amar, amor!
O poeta devia estar emotivo,
Quando achou que verbo seria
De intransitiva conjugação
Ou foi só porque não havia
Testemunhado a nossa conjunção...
No cerrado, só chover é intransitivo!
Na nossa gramática
Amar é vocação
Amor é vocativo
E se presta à reunião
Dos corpos uma vez apartados
Por ironia ou desígnio dos astros
Porém unos por definição.
Foi de vermelho
Que pintou-lhe as unhas
Despudorada que só ela
Com as longas garras afiadas
Cravadas no casco d'uma Stella.
Escarlate cor nos lábios
Rente ao copo, rente ao corpo
Estes pequenos grandes lábios
Levemente arroxeados
Os dentes brancos
A língua rija
Molhando os dedos que folheiam os alfarrábios
E lhe percorrem entumecidos rumo ao inferno
Ou ao interno astrolábio.
São dedos de guitarrista
Tocam rock dum dum dum
Geram da cevada mais o vinho
Nem borboletas, nem pirilampos
Senão relâmpagos que despencam no estômago
Explodem em choque anafilático
Percorrem todo o âmago e inda
Desbravam sem que matem na batalha
A mata atlântica tropicália
Que é vermelha Ela também!
Quente e úmida Quente e úmida...
Vão rumo ao estreito sul
Onde, entocada, a muralha
Segue impávida-pálida
Intocada pelo sol
E sobre as faces,
Essas rubras,
Resta o disfarce
Da dissimulada da Amália
Puro, casto e angelical.
Acho que chega de ensaio. O início de toda prosa requer a conjugação violenta de aquecimento e impulso. Calor, pulsão. Tanto que larguei a temperatura amena da varanda por mangas compridas e algum abafamento. Que me abafasse por fora e liberasse por dentro toda essa calefação. Autores amadores - e amantes, e atores - compartilham esse quê de firme indecisão. Começaria, assim, com uma frase de efeito ou um título curioso que pouco tivesse a ver com o conteúdo do restante. Como uma cantada perfeita ou a entrada contundente no palco a calar a audiência ou lhe arrancar palmas. Ou almas, com sorte.
Fato é que estas mal traçadas linhas vêm sendo maturadas já há alguns dias. Desde que, andando sozinha, a céu aberto, de repente ouço tilintar e vejo semi-quicar no chão um parafuso preto de cerca de cinco centímetros que realmente não tinha de onde ter saído. O puro retrato da ironia escancarada. Eu, caminhando, a céu aberto, e um parafuso. Do nada. No chão.
Olhei para baixo com surpresa e rindo da inusitada situação. Então para cima. Para baixo. Para os lados. De fato não havia sinais de onde o parafuso tivesse se desprendido. Salvo da minha cabeça, claro, essa conclusão infame também me veio de imediato.
Mas, de onde? A que porca cerebral corresponderia aquele pequeno pedaço de metal fundido e levemente enferrujado? Todos esses dias essa indagação estúpida e levemente nerd vez por outra despontava.
Diz que o principal hemisfério cerebral, em quase todos os seres humanos, é o esquerdo, que controla o pensamento lógico e a competência comunicativa, enquanto o simbolismo e a criatividade ficariam a cargo do lado direito do cérebro. Pois pronto. A completa incapacidade de narrar o dia em que um parafuso caiu da minha cabeça poderia ser explicada por uma pane geral em qualquer um dos meus dois hemisférios. E isso sem falar nos córtex, no hipotálamo, nos lobos, na amígdala... A ironia só aumentava.
Só que nada disso mais importa. Porque há cerca de vinte e sete minutos, quando finalmente me sentei, de mangas compridas listradas cor de rosa, morta de calor, em frente ao computador, decidida a filosofar sobre o famigerado parafuso, achei que estivesse chegado a alguma frase de efeito bacana para iniciar esse texto, levantei para pegar o parafuso - que obviamente havia guardado (para a posteridade ou alguma intervenção cirúrgica que vai que fosse necessária)-, este havia se desintegrado. Sumiu. Tomodoriu. Escafedeu-se.
Pois pronto. Fui condenada a ficar com um parafuso a menos pro resto da vida.
A sensação que eu tenho é que boa parte do tempo, nos últimos tempos (ou em todos os tempos dessa vida curta), a gente perde um bom tempo ouvindo essa autosequência mandona, teimosa e semipsicótica ordenando que se controle.
Controle impulsos, controle pulsões, controle, sobretudo, qualquer ímpeto vagabundo de achar que se vive num mundo panda repleto de flores onde você finalmente pode se deixar descontrolar, um pouco, aos poucos, aos muitos, que lindo!
Tem algo mais bonito que isso de saltar rumo ao nada?!
Exceto quando você pára pra pensar que... pera, o que diabos você tá pensando? Rumo ao NADA.
Se não tem nada lá, por que diabos você vai saltar?! Só porque você não é mais um pré-adolescente desengonçado, eventualmente com óculos de lentes fotocromáticas, aparelho ortodôntico, canelas finas e/ou uma pochete térmica da Sadia na cintura, não significa que você virou uma borboleta e ganhou asas! Não, querido. Você pode até ter saído do casulo, mas asas tendo levemente a achar que ainda não desenvolveu… Você esqueceu que aquela mesma música lá do começo (aquela mesma que faz você se sentir pseudorevolucionário e destemido por postar no facebook) traz já nos primeiros versos "eu falo de amor à vida".
Você quer cair, por acaso? Então, quer saltar por que mesmo?
A verdade é que ninguém salta pela queda. Pelo menos não ninguém normal. Tudo bem. Pelo menos não ninguém que eu ache normal. E eu acho que eu tenho uns achismos bem certeiros (mamãe também!).
Parece-me mais razoável que a gente salte pela chegada ao chão. Ou uma cama elástica que nos permita ficar indefinidamente saltando e voltando ao chão, instável, mas chão. Ou - e aí vou soar eu agora como aquela pré-adolescente ingênua e romântica que ainda acha que um dia virará borboleta - pela esperança de por algum motivo mágico cósmico ficar flutuando no ar…
Quem salta pela queda, desculpem leitores que acreditam na beleza da incerteza dos caminhos, é suicida. Mesmo porque não há nada de incerto em cair. O fim é bem certo, óbvio e inarredável: dar de cara no chão.
(Mas aí controle-se. E, pelo amor, não faça corpo mole e se levante logo pra começar o quanto antes a subir de novo rumo aos futuros saltos.)
(A pedidos, aqui vai a mensagem que falei aos meus pais na missa de bodas de prata, no último dia 6).
Boa noite a todos os amigos aqui presentes. Boa noite pai, mãe.
Eis que recebi a importante tarefa de falar sobre os 25 anos de casamento de meus pais. Em princípio pensei, bom, destes 25 anos, vivenciei e testemunhei 22, quase a totalidade. Isso deveria me dar alguma tranquilidade e muita propriedade para tratar do assunto. Rapidamente, porém, com alguma reflexão, os 22 passaram a ser apenas 10, cujas lembranças eram mais vívidas e quando a minha idade não tão tenra já me permitia de fato apreender, em lições diárias, o que torna esse casamento tão especial... Lembro que uma vez perguntei pra mamãe a receita, ao que ela me respondeu: "Ahh minha filha, só o que sustenta uma relação por tanto tempo é respeito, admiração e muito amor".
Mas ora! Amor é o tipo da coisa que criança talvez saiba bem melhor que adultos. E amor eu conheço desde o comecinho da vida. Salva pelo gongo!
Há alguns anos foi feita uma pesquisa com crianças de 4 a 8 anos sobre a definição de amor. Uma das respostas mais interessantes foi que amor é quando você fala para alguém algo ruim sobre si mesmo e sente medo que essa pessoa não venha a te amar por saber disso, aí você se surpreende, porque a pessoa não só continua te amando, como agora te ama mais ainda. Pois já há algum tempo venho achando que a gente se apaixona não pelas qualidades das pessoas, mas pelos defeitos. É quando as falhas, que todos temos, tornam-se toleráveis, admissíveis e até engraçadinhas, encantadoras, que o amor floresce.
Sinto decepcionar aqueles que ainda estão em busca de seu par perfeito, mas, cada vez mais, parece-me que amores perfeitos não existem. Primeiro porque somos todos imperfeitos. Depois, o amor, para dar certo, é sempre incompleto, pois demanda que sejam depositadas novas doses de amor todos os dias; e é assim, nesse permanente e constante processo de completar-se, que se revela pleno.
Há 25 anos, meus pais se amam todos os dias. Amam e admiram as inúmeras qualidades que saltam aos olhos em um e outro e aquelas mais escondidas, que requerem segundos, terceiros, vigésimos quintos olhares... E amam e respeitam as pequenas falhas que vez por outra despontam. Amam-se na imperfeição que nos torna humanos. Amam a imperfeição que torna o próprio amor possível.
Mas aos meus olhos de filha, apaixonada aprendiz, eles ainda são um casal de super-heróis, um romântico par shakespeariano, um casal protagonista de comédias românticas ou novelas das nove... E eu os amo, admiro e respeito, absolutamente.