Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
[Adélia Prado - Com licença poética]
Sangrar dias e dias
Contorcer o ventre latejante
Seguir bela e forte
estuporado o torso
supurada a pele
impregnado o cheiro de
calor e juventude
Chorar um choro intenso
copioso das dores
todas juntas e das
juntas
do corpo e da alma da
gente
fêmeas do mundo todo
Penso que é mesmo
um imenso poder
a se apossar
E nesse passo
mês a mês
Poder
vis-à-vis
Gritar-lhe
contorcida
Eis-me vida
cheia de graça
Bela forte
latejante
Quente
estuporada
Eis-me
sangue e criação
que vaza e dá vazão
à dor vermelha
dessa prece
desse peso
dessa potência
Eis-me púrpura!
Profana e sagrada
que preza
reza
sangra
cria
pare
e passa.
Penso que é mesmo
um poder imenso
esse nosso.